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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #100 (António Guerreiro)

Sobre um certo desaparecimento das mulheres e o aparecimento inflacionado do género

«Em 1972, pronunciando uma conferência em Milão, o doutor Jacques Lacan lançou para o auditório uma daquelas suas fórmulas que lhe valeram ser aclamado, pelos fiéis, como o Moisés da nação psicanalítica: “A mulher não existe.” Sem as subtilezas conceptuais do doutor Lacan, muitos são aqueles que nos últimos anos fazem desaparecer a mulher (mais do que o homem) pela utilização de uma palavra inflacionada: ‘género’. Por exemplo, a violência doméstica (exercida, em larguíssima maioria, pelos homens sobre as mulheres) passou a ser denominada “violência de género”. O conceito que tinha como finalidade libertar a mulher de determinações biológicas e de todo o essencialismo (em suma: libertar a mulher da “condição feminina”, já que a “condição masculina” é, historicamente, o estado normal de liberdade) acabou por lhe retirar a arma com que ela empreendeu históricos combates, pois foi como mulher que sofreu e sofre.

A questão do género, nalguns casos, deita a deita o bebé fora com a água do banho. Entendido como construção social, o género é o conceito para desfazer identidades e superar a diferença masculino/feminino, a diferença de todas as diferenças, convertida em poder de um sobre o outro, e por isso entendida quase sempre segundo o modelo da luta de classes (com todos os equívocos que daí advieram). Mas aquilo que foi atirado pela janela regressa pela porta e encarna na chamada “identidade de género”. Este discurso, que se tornou pregnante e se transferiu sem rigor para o âmbito político, traduz na linguagem do ser o que é da ordem do devir: não há um devir masculino da mulher, mas sim um devir feminino da mulher. Foi o que Simone de Beauvoir intuiu quando disse uma frase que se prestou a tantos equívocos: “On n’est pas femme, on le devient”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 19.6.2010.

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