O espectador ocioso #7: Um suicídio impossível
Imaginem que as pessoas à vossa volta vos assediam com a promessa de que está aí um filme assim para o deveras depressivo. Vocês, ainda que desconfiados, mas também ocasionalmente carregados de humores funestos, podem sentir-se tentados a desafiar a conjugação das duas depressões, a ver no que dará a reacção química, em particular se se encontrarem naquele estado em que quanto pior, melhor. Findo o filme descobrem quão enganadora foi a promessa, quão enganadoras são afinal as palavras dos outros (no que respeita ao cinema). Aquela depressão de pacotilha figurada no filme escondia a verdadeira e mais comezinha depressão resultante de ver um filme deveras mau. Uma rigorosa historiografia da cultura popular do final do século passado encarregar-se-á, certamente, de averiguar minuciosamente a que ponto a alegação acerca do papel que terá tido o visionamento do filme Stroszek de Werner Herzog no suicídio de Ian Curtis, que segundo o filme Control de Anton Corbijn (baseado no livro Touching from a distance da viúva) foi assim para o relevante, deve ou não ser tida razoavelmente em conta, quer no domínio cinematográfico quer no mitográfico. Tentando não ser frívolo onde Herzog não o pode ser, se permitirem que exprima uma modesta opinião, trata-se de uma estrita impossibilidade essa coisa de se suicidar depois de ver Stroszek. A não ser que seja de alegria comovida. (O filme passava coincidentemente na televisão, era um dos seus preferidos e ele chora e tudo!) Ouçam lá, não acreditem no que vos mostram. Há certas coisas que ainda são impossíveis, mesmo neste nosso mundo de rezas na era da técnica. As mais simples... Mas uma averiguação histórica, podendo esclarecer certos pontos da questão passada, não nos salvaguardará das ocorrências futuras. Proponho assim que se organizem ensaios experimentais rigorosos para tirar a coisa a limpo. Visionamento compulsivo de Stroszek para todos! Controlado, claro está! Para que pelo menos os Ian Curtis-wannabe deste nosso mundo não se vejam suicidados parvamente depois da vida parva que os fizeram viver em filmes parvos. | «There's an interesting coincidence regarding your great film Stroszek. Reading about the suicide of Joy Division singer Ian Curtis in the book Touching from a Distance we learn that he watched Stroszek before killing himself. While reading Faber's Lynch on Lynch, David Lynch talks about being in the UK filming The Elephant Man and seeing Stroszek on TV. Curtis and Lynch appear to have been watching the transmission of the same film at the same time. Although it's a huge simplification, the reactions of the two viewers appear to swing between a complete enchantment of life and self-destruction. Do you find this reveals something about your work? WERNER HERZOG - It is a very heavy question. There is no frivolity in answering this. I cannot really argue. It is as it is. I wish this singer was still alive and hadn't seen Stroszek at that moment. But deep at the bottom of my heart I do believe that Stroszek was not the reason that he killed himself. I do believe that he must have had some very, very serious deeper other reasons and he may have, and I'm very cautious, he may have used the film as a ritual step into what he was doing. Regarding David Lynch when he was doing Elephant Man, which is a wonderful film, I do not know. I actually know David Lynch personally and I should speak to him and ask him. There's no real answer to that question, only regret that a young man committed suicide. That's a fact that is sad which is very, very serious and is very disquieting.» Werner Herzog na BBC P.S.: Uma corda a passar por uma roldana no tecto, o ecrã a negro com apenas o som do movimento correspondente do corpo suicida, pode vagamente sugerir Bresson. A não-coincidência do som e da imagem, etc. e tal. Mas é mesmo só isso, vagamente sugerir... De resto, a cópia (muito mal) feita é outra: o Philippe Garrel a preto e branco, nomeadamente Les amants réguliers. Mais um filme de fotógrafo, enfim. Quando é que começam a proibi-los? Outra impossibilidade. Ter gostado de Joy Division e aceitar este filme. Mas não faz mal. O mundo parece cheio de coisas impossíveis que lhe dão graça. Sem ironia. |