Duas danças de Valeska Grisebach
I. Preâmbulo mórbido como contraponto
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi – questa morte che ci accompagna dal mattino alla sera, insonne, sorda, come un vecchio rimorso un vizio assurdo. I tuoi occhi saranno una vana parola, un grido taciuto, un silenzio. Cosí li vedi ogni mattina quando su te sola ti pieghi nello specchio. O cara speranza, quel giorno sapremo anche noi che sei la vita e sei il nulla. Per tutti la morte ha uno sguardo. Verrà la morte e avrà i tuoi occhi. Sarà come smettere un vizio, come vedere nello specchio riemergere un viso morto, come ascoltare un labbro chiuso. Scenderemo nel gorgo muti. 22 marzo '50 Todo este último livro de poemas foi escrito por Cesare Pavese na sombra da relação (falhada) com Constance Dowling, uma actriz de cinema, por sinal. Uns dias mais tarde, como se não fosse suficiente, Pavese escreveria ainda, no seu diário, as seguintes frases. (Estas ajudam a perceber porque senti a necessidade de modificar a tradução, substituindo, mal ou bem, o termo “sozinha”, menos bonito mas bem mais exacto, onde estava o mais neutro, quanto ao género, “só”). | Virá a morte e terá os teus olhos – esta morte que nos acompanha de manhã à noite, insone, surda, como um velho remorso ou um vício absurdo. Os teus olhos serão uma palavra inútil, um grito calado, um silêncio. Assim os vês em cada manhã quando sobre ti sozinha te inclinas ao espelho. Ó querida esperança, nesse dia saberemos também nós que és a vida e és o nada. Para todos a morte tem um olhar. Virá a morte e terá os teus olhos. Será como largar um vício, como ver ressurgir no espelho um rosto morto, como escutar lábios fechados. Desceremos o remoínho mudos. Cesare Pavese, Trabalhar cansa, trad. [modificada] Carlos Leite, Cotovia, Lisboa, 1997, pp. 350-1 25 de Março de 1950 Non ci si uccide per amore di una donna. Ci si uccide perché un amore, qualunque amore, ci rivela nella nostra nudità, miseria, inermità, nulla. Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada. Cesare Pavese, O ofício de viver, trad. Alfredo Margarido, Relógio D'Água, Lisboa, 2004, pp. 376 |
II. Duas danças de Valeska Grisebach
Nicole Gläser dança em MEIN STERN (2001) de Valeska Grisebach As pessoas podem ser mais ou menos hábeis a dançar. Não que se deva reparar demasiado nisso. No entanto, para quem goste de ver pessoas dançar, o mais estranho é quando elas são verdadeiramente hábeis e nada de singular delas aparece no seu movimento. Como se a pessoa escondesse os seus traços vivos nesse momento que se esperaria dos mais apropriados para a sua expressão. Há mesmo pessoas em que o inverso se dá. A sua dança oculta a sua singularidade e podemos nesse momento desconhecê-las. Como em todo o virtuosismo estéril, algumas pessoas podem dançar demasiado bem para o seu próprio bem, sem chegarem a conseguir exprimir a sua ou outra qualquer singularidade. Expõem apenas, na verdade, o carácter geral das capacidades motoras do seu corpo, e são por isso facilmente reconhecidas e admiradas. A expressão individual na dança parece-me muito mais ligada à exposição de uma fragilidade, à evidência da incompletude em cada um. Por isso, neste elemento de exposição que é comovente, há também sempre algo de possivelmente patético. Quem expõe a sua maneira de dançar, se calhar mais desarticulada ou um pouco repetitiva, mas não se confundindo com a pura inabilidade, expressa igualmente o seu modo de vida menos geral, os seus afectos em toda a sua extensão, sem protecção, aquilo que as torna únicas. Fazem-no porventura inconscientemente, mas deixando vir à tona a fragilidade que merece ser exposta, aquela que constitui a partilha entre as pessoas, a que noutros momentos se é obrigado a esconder, e que constitui a única verdadeira arma contra a solidão. | Andreas Müller dança em SEHNSUCHT (2006) de Valeska Grisebach Creio que a realizadora alemã captou isto intensamente. As personagens principais das suas duas longas metragens são excelentes bailarinos de si próprios, não apenas porque expressam a sua singularidade, mas por ela ter criado condições de isolamento espaciais e temporais das personagens nestas partes do filme, para que as possamos observar com atenção. Na pequena obra-prima MEIN STERN, uma crónica da adolescência, a jovem interpretada por Nicole Gläser descobre aos poucos os encantos e as dificuldades do amor. Neste excerto do filme, vêmo-la, sempre calma e confidente, acompanhada por uma amiga numa discoteca, antes de a podermos observar a dançar isoladamente. A sua face mantém-se impassível, naquele silêncio adolescente do não saber, do não precisar de pôr em palavras as coisas que vão lá dentro, como noutras cenas do filme. Mas Valeska Grisebach guardou para um momento de dança a sua expressão. Enquanto vai procedendo à passagem de uma música para a outra, a realizadora faz passar a jovem adolescente de uma dança acompanhada pela amiga para uma nova música, já apenas com ela no plano, cortada pelo peito, para depois surgir, de corpo inteiro e por mais de um minuto, no espaço vazio a dançar para nossa pura contemplação. Ela esbraceja ligeiramente, desenhando figuras no ar, e tem um divertido gesto de puxar constantemente as mangas para cima. |
Em SEHNSUCHT, a cena de dança passa-se mais no início do filme com o homem interpretado por Andreas Müller, um serralheiro que também é bombeiro voluntário, movimentando-se languidamente e sob o efeito do álcool ao som de «Feel» de Robbie Williams, numa espécie de jantarada. Grisebach indica subtilmente, antes da dança se iniciar, e em contracampo às costas (note-se o pormenor) do dançarino, a personagem feminina com que se irá cruzar no seguimento da noite. Novamente, a personagem irá dançar isolada uma música em particular. E, neste caso, parece até haver uma correspondência talvez excessiva entre a expectativa presente e a acção futura da personagem com a letra da música. O homem move-se lenta e hesitantemente, sempre de olhos fechados, mas de forma graciosa, e a realizadora introduz alguns cortes. | Em ambos os casos, estes momentos de subtil êxtase, que decorrem da expressão individual na dança, parecem projectar sobre a vida das personagens uma capacidade de produzir acontecimentos afectivos que se revelarão decisivos. No caso do homem, uma aventura extra-conjugal nessa noite que se transformará num amor. No da jovem adolescente, igualmente um encontro amoroso que decorrerá desse tempo partilhado. Estes momentos de exposição de um si próprio menos circunstancial, mais autêntico, em suma, de expressão da intimidade das personagens no acto de dançar, parecem constituir o oposto de uma dança baseada na esterilidade virtuosa que não permite os acontecimentos afectivos. P.S.: Convido ainda à seguinte e tão elucidativa comparação com o videoclip da mesma música de SEHNSUCHT, para ver se, ao contrário do que se diz acerca do cinema estar nos videoclips, aqui não é o inverso: o videoclip está no filme. |