As violências que nos forçam a pensar não surgem assim isoladas, arrumadinhas, bem postas. Formam antes estranhos agregados de diferentes tipos de experiências, mais ou menos saudáveis. Podemos desconhecer o que força essa agregação necessária, ou, pelo contrário, esforçarmo-nos por tentar apagá-la o máximo possível, por ela ser demasiado explícita, obscena, impartilhável. Muitas vezes, escrever a partir desse confronto é quase um exorcismo, um acto para conseguir que algo saia definitivamente de nós, a tentativa de expulsão de uma ideia fixa parasita que nos faz mal. O acto de dançar é das coisas mais graciosas que um ser pode fazer. O cinema debruçou-se inúmeras vezes sobre isso, de MÉDITERRANÉE de Jean-Daniel Pollet, o primeiro que me vêm à cabeça, a... enfim, tantos outros. Mas dá-se muitas vezes que a dança e o movimento são pensados por oposição ao pensamento, ou à consciência, como um território privilegiado de uma espontaneidade sem mais. A propósito de TEA AND SYMPHATY de Minelli, e evocando o texto «Sobre o teatro das marionetas» de Kleist, Cyril Neyrat relacionou recentemente, num belíssimo pequeno ensaio, a ausência de graça com a consciência do movimento, a propósito de uma cena em que as personagens, tentando representar o seu próprio andar, acabam por se ver incapazes, ou reproduzindo meramente caricaturas, desse acto tão natural. Poder-se-ia dizer o mesmo de todas as actividades que envolvem o corpo. Os gestos mais singulares são aqueles em que este não encontra tempo para diferir a ideia do corpo, em que os actos mentais e corporais são absolutamente contemporâneos.
| Claro que se pode chamar a isto de espontaneidade, a ausência do peso de uma consciência que se concebe como coerciva, mas não creio que se possa dizer que não haja aí pensamento. Uma má imagem do pensamento precede-nos... Portanto, a dança surge associada à espontaneidade e à vitalidade como uma das mais impressionantes manifestações criativas e comemorativas do facto de se estar vivo. Mas há igualmente uma estranha e paradoxal relação entre a dança e a morte. Como se neste aparente gesto extremo da vitalidade se pudesse também encontrar a expressão mais exacta da morte. Era isso, em parte, que mostrava a tradição medieval das “danças macabras”. Nestas, esqueletos são representados a dançar, a tocar música. Tento encontrar um excerto de LA RÈGLE DU JEU de Jean Renoir em que há uma espécie de dança macabra na festa, ou antes, tento encontrar a sua evocação por Godard nas HISTOIRE(S) DU CINÉMA, para aqui colocar, mas nada feito. (Curioso o efeito destas história(s), em que muitas vezes os filmes vêm à cabeça filtrados pelo trabalho de súmula e concentração rítmica de Godard, como se ele deles tivesse retirado uma essência qualquer ou um suplemento que quase vale pela visão do original, ou que, pelo menos, a alimenta de novo fulgor).
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Nisto da dança macabra o que me parece mais interessante não é o aviso irónico e cáustico sobre a brevidade da vida e a universalidade da morte. E, obviamente, pode sempre dizer-se que a irrupção da morte na dança depende da perspectiva que se adopte a praticá-la ou observá-la. Mas parece-me inegável que, como tudo o mais na vida, também o gesto de dançar pode estar embebido de afectos tristes e profundamente fúnebres. Em particular quando se quer colocar à força a máscara da alegria sobre o rosto da miséria afectiva quotidiana. Aí, mesmo uma festa se parece tanto a uma dança macabra, em especial se for inundada de sorrisos fixos. Porque a morte ri. E o riso é a maior máscara mortuária. Talvez por isso seja de desconfiar um pouco de todos aqueles que (na televisão, por exemplo, onde estão sempre tão animados) se esforçam demasiado em “fazer a festa”. Não nego que a alegria possa romper as máscaras e aparecer também ali, vencendo os medos, mas não tem ela um lugar mais belo em tantas outras coisas? E le bonheur n’est pas gai... Da morte diz-se habitualmente, em casos de infortúnios pessoais graves, que se a olhou na face. Mas a dança torna evidente que a morte, a sua aparição, não surge num lugar privilegiado do corpo, como os olhos. Podem passar-se anos a olhar alguém nos olhos e não ver nada, e ao contemplar um simples gesto quotidiano perceber tudo o que importa perceber dessa pessoa para que cresça ou mirre definitivamente em nós. Para quem não tenha de todo por hábito pensar na morte, a experiência de a ver pode ser repentina e fulminante. Em momentos como esses há que se agarrar ao que se possa, ao que surja, para perseverar em vida. |
Nessas noites ou dias fundos, são as coisas simples que nos podem salvar, literalmente. Um verso de um poema pode surgir de repente à memória, se por acaso nos cruzámos antes com ele. Tendo ficado tanto tempo meio incompreendido, irrompe desta vez devido à estreita correspondência com o que se acaba de viver. Nada impede as coisas incompreendidas de fazerem o seu caminho dentro de nós, mesmo que lento, eventualmente sem saída. O verso pode ser conhecido e admirado há muitos anos, mas nunca ter sido bem visto, ou dançado, ou sentido interiormente, vivido. Porque até algo como lembrar-se de um poema faz parte dos enormes mas falíveis recursos da sobrevivência. A arte não está nem acima nem abaixo da vida, está bem dentro, ao lado das pessoas e de tudo o mais que importa. Era por isso que, ainda bem há pouco imaginava, na minha particular soberba, o suicídio impossível perante algumas expressões fortes da vida, como um belo filme. Mas concedo que pode haver igualmente a irrupção de um tal terrível, de um tal horror, de um grau tal que não se consiga diminuir, diluir em nós, que nos esbata no combate com a dor, até que por fim, lutando contra esse fogo, nos apaguemos a nós mesmos... É assim que os sobreviventes desses encontros, quando se afastam desse diferendo vital irresolúvel, costumam dizer que determinada pessoa morreu para si. Existe até a expressão mais corrente, mas não menos horrível, do “vai morrer longe”, que significa isso mesmo, a injunção a que a pessoa permaneça viva mas longe até que morra, como se não lhe fosse permitido habitar o mesmo mundo, a mesma terra. Há ainda casos mais extremos, em que não é a própria pessoa que morre para nós, mas em que ela devém a nossa própria morte, a que virá e terá os seus olhos...
«Virá a morte e terá os teus olhos» é o primeiro verso de um poema escrito por Cesare Pavese pouco tempo antes de se suicidar. Este poema não trata, no entanto, de uma acusação simples, pois se os olhos são de uma ela (no original italiano), são depois também os que vemos ao espelho. O poema fala portanto dos nossos olhos da morte, não apenas dos de outrém. Mas talvez devêssemos falar então de tudo o resto, em particular do rosto, do tanto que nele se encontra, do corpo que dança também, do riso, de um sorriso falsamente conservado no pior dos momentos, em suma, de tudo aquilo que pode expressar a morte em vida. Pois onde cresce o que salva está também o perigo...
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