Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #9: Despudor do rosto, pudor do corpo
Parece haver o risco dos filmes levarem por vezes demasiado longe, bem para lá do necessário, a ideia que os enforma. Ao manter-se assim tão fiel à sua ideia, ou mesmo ao seu título, Compilation, 12 instants d’amour non partagé de Frank Beauvais, constitui-se, infelizmente, como uma pura compilação. Trata-se de uma série de 12 canções com os correspondentes grandes planos de um mesmo rosto que as ouve. Retenha-se o pormenor elucidativo de haver igualmente no filme aqueles breves segundos que separam nos cedês uma música da outra. O que fica de fora é tudo o resto, desde logo o corpo do ouvinte, mas também, e sobretudo, os momentos de lassidão, de antecipação ou do depois das canções, o que mais importa, ou até mesmo o desconforto. Tanta fidelidade torna-se demasiado cozida, não deixando nada vivo de fora intrometer-se. Aos realizadores, como aos demais artistas e pessoas vivas em geral, pede-se que não sejam demasiado fiéis a si próprios, que se enganem e escapem às leis que para si próprios criam. Diria até, no fim de contas, que esse gesto de libertação contra si próprio é que é o criativo, talvez mais do que as regras que se criam e que constituirão um estilo posterior reconhecível. Boris Lehman, no debate após a projecção do seu Tentatives de se décrire, explicava que tinha decidido incluir aquelas partes iniciais dos planos, em que fazia a claquete com as mãos, e as finais, em que se o ouvia dizer “corta”, para introduzir alguma dureza. Eis umas das muitas coisas que parecem faltar a Compilation. | Mesmo aquele que poderia ser o ponto de partida mais interessante do filme, a constatação de como são interessantes as expressões faciais (e corporais) das pessoas em posição de escuta, por oposição às das pessoas que olham, acaba afinal por ser meramente sugerido. A propósito, estou em crer que o cinema tem exercitado muito mais esta homologia dos olhares (entre o espectador e as personagens) do que a heterologia do olhar e da escuta. Outra das coisas que lhe faltam é o pudor. A presença constante daquele rosto do jovem amado pelo realizador, em 12 grandes planos que totalizam 40 minutos, é uma experiência extremamente constrangedora. (Foi assim, pelo menos, que eu a senti.) Um duplo embaraço, ao do jovem actor filmado de tão perto segue-se o nosso. Aliás, de um constrangimento particular, que nunca tinha tido enquanto espectador de cinema, pela sobreexposição de um rosto (ou corpo) perante nós, e que é semelhante, devo dizer, ao que sinto, por vezes, quando no teatro, ou quando alguém nos faz uma pergunta, banal ou importante, que nos apanha desprevenidos e a que não sabemos sequer como começar a responder. Quando assim é só nos resta baixar os olhos. (Um pouco como fazem os carrascos do S-21 de Rithy Panh, talvez em expressão da sensação de vergonha.) Nestas condições precárias, aquilo torna a experiência de ver o filme suportável são as bonitas músicas, muito bem escolhidas, e o acompanhamento, de olhos em recato, que |
podemos delas fazer nas legendas que traduzem a letra das canções. Pelo menos eu evitava a todo o custo o rosto do jovenzinho, que, imaginem, foi sujeito a 250 planos semelhantes. Também por isto não pode ser tomado assim como tão evidente aquilo que é proclamado sobre este filme, que seja ele próprio uma consequência do amor do realizador pelo seu actor (para além do cinematográfico, na vida real, quer dizer). Não se tratará antes de um espelhamento que já nada terá a ver com o amor, que será quase o seu contrário, uma cristalização do olhar de quem ama? O realizador ama, é dito. Mas o filme, no entanto, não. E porque havia de o fazer? Apenas pela força da vontade, quando o rosto daquele que é amado aparece assim desfeito pela sobreexposição, apagando os traços do seu segredo, tornando-o vulgar, dificilmente amável? E não é esse precisamente o resultado dos amores maldosos ou desequílibrados, das paixões funestas? Pergunto-me como aguentaram embaladas este despudor do rosto as pessoas que sairam depois durante a projecção que se seguiu na mesma sessão, a do filme De son appartement de Jean-Claude Rousseau (incluído no mesmo programa ‘Riscos e ensaios’). Sugiro por isso algum cuidado a ter nas avaliações que se fazem destas pretensas documentações do íntimo. Neste aspecto, o íntimo por conhecer em La pudeur et l’impudeur de Hervé Guibert, revisto, não perdeu quase nada da sua força (cinematográfica). | Neste gesto, que agora vemos mais afastado de uma actualidade premente, e que nos surge surpreendentemente tão simples e livre, apesar de focar a enormidade da experiência da doença do realizador, sob a qual se centra, são menos os momentos líricos de composição que resistem, os gestos artísticos explícitos, e antes os em que há uma verdadeira crueza na exposição do corpo. São esses que são justos perante a experiência da doença. Guibert resistiu estoicamente a transformar a doença, a SIDA, num assunto privado, pessoal, no mau íntimo. Seja a cena do realizador a cagar da diarreia provocada pelos medicamentos com a porta da casa-de-banho aberta, seja a sua operação, a tomar duche, a ver-se ao espelho nu, etc., tudo o que tenha a com a exposição franca do corpo surge como documentando algo que não conhecíamos, de que não tínhamos feito a experiência (ainda que indirecta), e que era (e ainda é) importante ver. E tal de forma absolutamente nada sentimental. Por incrível que pareça, são momentos extremamente fortes de pudor do corpo. A aparente sobreexposição (nudez, traços da doença, etc.) traduz-se em recato. [Mais uma vez, no cinema não há regras; há modos de fazer, casuísticos.] O importante é que Guibert resistiu a filmar o pudor (ou o despudor correlativo) de um íntimo que estava pressuposto, mostrando antes o extremo pudor da exposição de um corpo novo, não no sentido de jovem, mas por atacando pelas novas formas da infinita doença. |