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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #205 (António Guerreiro): O grande bordel

Uma das grandes conquistas do nosso tempo, que os novos meios de comunicação elevaram a um estado de paroxismo, é a possibilidade de dizer ‘Eu’, de expor – e impor – a instância subjetiva. Até os jornais mais sóbrios se tornaram permeáveis a esta grande festa do ego que se tornou um bordel das subjetividades. Quem é que ainda sente um leve estremecimento diante da exibição do ‘Eu’ de um cronista ou de um repórter? Quem é que se escandaliza com o aparecimento imoderado, no espaço público, do ‘Eu’ de um escritor? Quem acha que esta perda de distância e a teatralização de um ‘Eu’ completamente fanérico têm um aspeto obsceno? O ‘Eu’ – a possibilidade de dizê-lo em regime de proliferação – é o sintoma do nosso tempo, a marca indelével da estupidez epocal (segundo o princípio, muito flaubertiano, de que cada época tem a sua). Alimentar, das mais diversas maneiras, a emergência e a explicitação do ‘Eu’, ao ponto de se ter perdido o sentido de que não há nada mais desinteressante do que dizer ‘Eu’ publicamente, tornou-se um apelo à concupiscência.  
E não foram apenas as regras da bienséance que mudaram: foi toda a ordem do discurso. Nos media, há cada vez menos a comparência de quem fala para lá das suas contingências egoicas, além da esfera do ‘Eu’ e do ‘Tu’. O discurso do universal, que foi outrora representado por uma figura desaparecida, a do intelectual (que, de resto, tantas vezes deixou uma má memória), deu lugar à grande parada carnavalesca dos ‘Eus’, que gritam, saltam e se atropelam. A partir de que momento é que, nos jornais e revistas, se perdeu o pudor de dizer ‘Eu’? Eis uma questão muito mais importante do que parece, capaz de nos elucidar acerca da nossa condição epocal, reclamando uma investigação arqueológica. A grande festa do ‘Eu’, a pessoalização como fenómeno mediático total, requer uma contrarrevolução puritana.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.8.2012.

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