Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #202 (António Guerreiro): Eleições de demofobia

Mesmo que consideremos que o conceito de democracia está contaminado por um mal-entendido fundamental e deu lugar a uma conversa inócua que esvazia a política de conteúdo, dizer “que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal”, como fez esta semana o primeiro-ministro, é um lapso terrível porque a verdade que nele surge, como um sintoma, é da ordem do irreparável. Tão irreparável como a virgindade perdida, que nem Deus consegue tornar reversível porque entre os seus poderes, segundo uma discussão teológica vinda da Idade Média, não está o de fazer com que aquilo que aconteceu deixe de ter acontecido. O acontecimento que teve lugar na frase de Passos Coelho pode ser traduzido por uma disposição que pode e deve ser chamada “demofobia”. A demofobia moderna tem uma estação fundamental na crítica nietzschiana da democracia e na sua contestação do sufrágio universal.  

Mas a demofobia governamental, de quem ascendeu ao poder pelo voto, é outra coisa que não tem, nem nunca teve, premissas políticas ou filosóficas: confundiu-se sempre com a defesa de uma forma de governo e com a procura de garantir uma legitimidade baseada no princípio da infalibilidade governamental. Segundo este princípio, não é governo quem erra ou o seu projecto que é mau, mas é o povo que não está preparado ou se deixou manipular. O “que se lixem as eleições” é uma resposta demófoba de quem tem dos cidadãos a ideia de que eles não atingiram o estado de maioridade e são incapazes de agir e pensar por si mesmos. E o que vem a seguir, “o que interessa é Portugal” é o enunciado lógico de toda a demofobia: o povo não se define por uma vontade própria, mas pelo critério orgânico da nação. Em suma: a demofobia não erradica o povo, mas faz dele uma entidade mítica, perante a qual o poder governamental se inclina e em nome da qual assume a sua ‘missão’.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 28.7.2012.

Sem comentários:


Arquivo / Archive