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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #187 (António Guerreiro): Modos de dizer

Günter Grass escreveu um poema, que foi publicado no “Süddeutsche Zeitung” – “O que deve ser dito” –, contra o que ele entende ser a ameaça bélica de Israel, que não é verdadeiramente um poema. Se fosse, pelo teor de conflito e polémica que já provocou, merecia ser dado como exemplo da problemática relação entre poesia e política. De poema, tal texto só tem as cesuras que lhe dão a forma versificada, e a questão que se coloca é por que razão o escritor quis que o seu teto com carácter de manifesto tivesse a forma de um poema e não de um texto em prosa. É verdade que, dessa maneira, ele pode vagamente reclamar-se dos mais antigos poemas políticos em língua alemã, os poemas gnómicos, sentenciosos, chamados Sprüche, mas é mais plausível que tivesse antes querido introduzir um fator de obliquidade, por pudor ou má consciência em isolar completamente o conteúdo político do texto. Através dessa dissimulação poética, paradoxal porque óbvia (tanto mais que há uma alusão a Hölderlin no título), o escritor Günter Grass assinala implicitamente que entrou em conflito com a sua tomada de posição política.  

Tendo escolhido a forma do verso, introduziu interrupções, hiatos, quis significar que “o que deve ser dito” é algo de que não se pode falar. A forma da poesia não lhe serviu senão para prolongar um subentendido. E isso é o que o seu texto tem de mais polémico, porque se trata da mais funda questão alemã desde a II Guerra Mundial, com violentas emergências cíclicas (antes de Grass, tinha sido outro escritor, Martin Walser, a provocar uma polémica semelhante, em 1998, no discurso de agradecimento do Prémio da Paz dos Livreiros Alemães). O efeito que Grass quis produzir com o seu poema faz lembrar uma frase de um outro escritor alemão, Tucholsky, que morreu em 1935: “Por causa do mau tempo, a revolução alemã produziu-se no domínio da música.”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.4.2012.

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