Ao pé da letra #186 (António Guerreiro): Políticos e cronistas
Surgiu e prosperou em Portugal uma categoria que não existe em nenhum país: a do político que tem colunas de opinião nos jornais e assento como comentador na televisão. Este prodígio de ubiquidade, naturalizado pelo hábito, está ao serviço da hipertrofia da opinião – essa “magia negra”, como dizia Kraus – e da política dos ‘protagonistas’ (palavra fatal) que prescindiu das ideias. O político cronista e comentador segue um protocolo de denegação da sua incompatibilidade: faz pequenas inflexões que não o subtraem ao território pragmático de fé e conveniência, mas que lhe permitem exibir um je-ne-sais-quoi e um presque-rien de autonomia, adquirindo aura de autor no mundo mimético dos atores. Estas pequenas deslocações, propiciadas por um stock de operações retóricas, servem dois critérios: garantem o mínimo de crédito à opinião (já que ela não se deve confundir com propaganda) e simulam o alargamento da esfera pública. | Os políticos investidos de cronistas fazem uma incursão redentora no mundo profano, como quem se desembaraça provisoriamente das suas vestes. O problema, porém, como está bem patente no que escrevem e dizem, é que se trata de um jogo de representações que tem como resultado não o alargamento da esfera pública e civil mas uma extensão do palco para o mero jogo político. O teor de pensamento crítico que produzem é nulo. A incompatibilidade entre o lugar de político em funções e cronista político, reconhecida em todo o lado, não sofre nenhum desmentido pelos hábitos nacionais, a não ser num plano meramente formal. Muito haveria a ganhar, no debate político, se esta forma de colonização fosse, como em todo o lado, considerada inadmissível, e fossem convidados, com a mesma frequência e generosidade, os “autores” do mundo civil a entrar no território que ocupam os políticos-atores. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 6.4.2012. |
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