Ao pé da letra #140 (António Guerreiro)
A propósito da crise, temos ouvido muitas vezes dizer que, no fundo, “somos todos responsáveis” e “não nos sabemos governar”. Que ‘nós’ é este? A que corresponde tal sujeito de culpa coletiva? Não é o ‘nós’ de uma pertença nacional, como é uma certa noção de povo — uma entidade que não se constitui com base numa oikonomia, isto é, num governo da casa. É antes um ‘nós’ social. Mas como deduzir uma culpa e uma responsabilidade coletivas com base numa ideia de sociedade que as regras da economia precisamente extinguiram? Devemos lembrar a famosa frase de Margaret Tatcher, numa entrevista: “A sociedade não existe.” Mais do que a verificação de um facto, era uma prescrição: para que o sistema da economial liberal capitalista funcione bem, é preciso que não haja sociedade. E, quando há sociedade, em que é que ela consiste? Do ponto de vista ingénuo dos governantes e dos que distribuem culpas coletivas, a sociedade é uma trama de relações, de pactos e factos livremente decretados e escolhidos por homens livres e iguais. | Se lermos um texto profético de Gabriel Tarde, «O Que É Uma Sociedade?», publicado em 1884, obtemos uma resposta muito mais lúcida e válida. A sociedade, diz Tarde, é imitação, e o homem é produto de um “sonambulismo social”. Para Tarde, os homens são semelhantes a formigas e, como tal, seguem uma ordem que se institui por contágio imitativo e por atração magnética. Este sistema produz alucinações, e aquilo a que hoje chamamos ‘público’ corresponde a este sujeito que segue uma via psicótica. As regras da economia em que vivemos apostam na formação desse monstro que são os públicos e na extinção da sociedade. Há quem pense que se trata de uma intoxicação voluntária. Mas a teoria do sonambulismo social coloca hipóteses muito mais fecundas. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.5.2011. |
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