Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #138 (António Guerreiro)

Regressemos à “filosofia portuguesa”, porque a coisa cresce, multiplica-se e invade. Na semana passada, tratava-se de uma revista que restaura o que, na sua primeira versão, já se proclamava como “renascença”: a Nova Águia, reinventada agora como órgão de uma imaginária panlusofonia; esta semana, trata-se de um colóquio internacional “Nietzsche, Pessoa e Freud” que, inspirado no poder mágico do triângulo, deambulou pela Faculdade de Letras, Universidade Nova de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. O quadro teórico-literário, filosófico e ideológico preponderante no colóquio (apesar da participação de estudiosos que nada têm que ver com tal coisa, desde logo Eduardo Lourenço) deixava-se facilmente reconhecer no tal ‘pensamento português’, cujas operações para colonizar Fernando Pessoa não começaram agora. Na perspectiva destes ideólogos, Pessoa ganha o estatuto de um ‘pensador’, no mesmo plano de Nietzsche e Freud.

À primeira vista, até pode parecer engrandecimento, mas é na verdade uma manipulação grosseira, destinada a reduzir a sua poesia a ideologemas, filosofemas, mitologemas e outros ‘emas’. O título do colóquio — “Nietzsche, Pessoa e Freud” — parece designar um enorme continente cosmopolita, mas explorado por tais ideólogos transforma-se numa pequena província platónica, onde podemos ouvir falar de coisas como os “arquétipos de Portugal” (na verdade, de quem eles gostam verdadeiramente é de Jung, não de Freud), visando construir uma dimensão esotérica e mitológica da história, que faz lembrar a “Alemanha secreta” de Stefan George. Ocultismos, esoterismos, o mito do poeta mediúnico que oblitera completamente o método e tempo de trabalho revelados pelo espólio — eis o que faz pensar num dito de Adorno: “O ocultismo é a metafísica dos imbecis”.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 7.5.2011.

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