Aclamação (Giorgio Agamben + Charles Chaplin)
A função política essencial da glória, da aclamação e da doxologia parece hoje desvanecida. Cerimónias, protocolos e liturgias existem ainda por toda a parte, e não apenas onde sobrevivem as instituições monárquicas. Nas recepções e nas cerimónias solenes, o presidente da república continua a seguir regras protocolares, a cuja observância são delegados funcionários especiais, e o pontífice romano ainda se senta na cathedra Petri ou na sedia gestatoria e veste paramentos e tiaras, de cujo significado os fiéis perderam em geral a memória. Regra geral, no entanto, cerimónias e liturgias tendem hoje à simplificação, as insígnias do poder estão reduzidas ao mínimo, as coroas e os ceptros conservados nas vitrinas dos museus ou dos tesouros e as aclamações, que tanta importância tinham para a função gloriosa do poder, parecem quase por toda a parte desaparecidas. Certo, há tempos não assim tão distantes, nos quais, no âmbito daquilo a que Kantorowicz chamava the emotionalism dos regimes fascistas, as aclamações tinham desenvolvido uma função decisiva na vida política de alguns grandes Estados europeus: talvez nunca uma aclamação em sentido técnico tenha sido pronunciada com tanta força e eficácia como Heil Hitler na Alemanha nazi ou «Duce duce» na Itália fascista. Todavia, estes gritos ruidosos e unânimes que ressoavam ontem nas praças das nossas cidades parecem hoje parte de um passado longínquo e irrevocável. Mas será mesmo assim? […] A contribuição específica de [Carl] Schmitt não é aqui somente a de ligar indissoluvelmente a aclamação à democracia e à esfera pública, mas também a de identificar as formas nas quais ela pode subsistir nas democracias contemporâneas, em que «a assembleia do povo presente e toda a espécie de aclamação se tornaram impossíveis». Nas democracias contemporâneas, a aclamação sobrevive, segundo Schmitt, na esfera da opinião pública e apenas partindo do nexo constitutivo povo-aclamação-opinião pública é possível reintegrar nos seus direitos o conceito de publicidade, hoje «bastante ofuscado, mas essencial para toda a vida política e em particular para a democracia». […] | Mais do que a singular anexação […] à tradição democrática de um elemento, a aclamação, que parece pertencer sobretudo à tradição do autoritarismo, interessa-nos aqui a indicação segundo a qual a esfera da glória — de que tínhamos tentado reconstruir o significado e a arqueologia — não desaparece nas democracias modernas, mas desloca-se simplesmente para um outro âmbito, o da opinião pública. Se isto é verdade, o problema hoje tão debatido da função política dos media nas sociedades contemporâneas adquire um novo significado e uma nova urgência. Em 1967, com um diagnóstico cuja correcção nos parece hoje demasiado óbvia, Guy Debord constatava a transformação à escala planetária da política e da economia capitalista em «uma imensa acumulação de espectáculos», na qual as mercadorias e o próprio capital assumem a forma mediática da imagem. Se conjugarmos a análise de Debord com a tese schmittiana da opinião pública como forma moderna da aclamação, todo o problema do actual domínio espectacular dos media sobre cada aspecto da vida social aparece a uma nova dimensão. Em questão está nada menos que uma nova e inaudita concentração, multiplicação e disseminação da função da glória como centro do sistema político. Aquilo que outrora permanecia confinado à esfera da liturgia e dos cerimoniais concentra-se nos media e, conjuntamente, através deles, difunde-se e penetra a cada instante e em todos os âmbitos, tanto públicos como privados, da sociedade. A democracia contemporânea é uma democracia integralmente fundada sobre a glória, ou seja, sobre a eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pelos media para lá de toda a imaginação (que o termo grego para glória — doxa — seja o mesmo que designa hoje a opinião pública é, deste ponto de vista, algo mais que uma coincidência). E, como tinha sempre acontecido nas liturgias profanas e eclesiásticas, este suposto «fenómeno democrático originário» é mais uma vez capturado, orientado e manipulado pelas formas e segundo as estratégias do poder espectacular. |
Começamos agora a entender melhor o sentido da actual definição da democracia como government by consent ou consensus democracy e a decisiva transformação das instituições democráticas que está aí em questão. [...] Aquilo que a nossa pesquisa mostrou é que o Estado holístico fundado na presença imediata do povo clamante e o Estado neutralizado decidido nas formas comunicativas sem sujeito são opostos apenas na aparência. Estas não são senão as duas faces do mesmo dispositivo glorioso nas suas duas formas: a glória imediata e subjectiva do povo clamante e a glória mediática e objectiva da comunicação social. Como deveria ser hoje evidente, povo-nação e povo-comunicação, ainda que na diversidade dos comportamentos e das figuras, são os dois rostos da doxa, que, enquanto tais, incessantemente se entrelaçam e se separam na sociedade contemporânea. Neste entrelaçar, os teóricos «democráticos» e laicos do agir comunicativo arriscam encontrar-se lado a lado com os pensadores conservadores da aclamação como Schmitt e Peterson; mas este é, precisamente, o preço que devem pagar de cada vez as elaborações teóricas que crêem poder dispensar precauções arqueológicas. Que o government by consent e a comunicação social, sobre os quais em última instância o consenso repousa, reenviam, na verdade, à aclamação, é algo que mesmo uma pesquisa genealógica sumária está em condições de mostrar. [... S]e se entende o nexo essencial que o liga à aclamação, o consenso pode ser definido sem dificuldade, parafraseando a tese schmittiana sobre a opinião pública, como «forma moderna da aclamação» (pouco importa que a aclamação seja expressa por uma multidão fisicamente presente, como em Schmitt, ou pelo fluxo dos procedimentos comunicativos, como em Habermas). Em qualquer caso, a democracia consensual, que Debord chamava «sociedade do espectáculo» e que é tão cara aos teóricos do agir comunicativo, é uma democracia gloriosa, na qual a oikonomia se resolve integralmente na glória e a função doxológica, emancipando-se da liturgia e dos cerimoniais, absolutiza-se de maneira inaudita e penetra todos os âmbitos da vida social. | A filosofia e a ciência política esqueceram-se de fazer as perguntas que, de cada vez que se analisam numa perspectiva genealógica e funcional as técnicas e as estratégias do governo e do poder, se apresentam em todos os sentidos como decisivas: De onde retira — mitológica e facticiamente — a nossa cultura o critério da politicidade? Qual é a substância — ou o procedimento, ou o limiar — que permite conferir a algo um carácter propriamente político? A resposta que a nossa pesquisa sugere é: a glória, no seu duplo aspecto, divino e humano, ontológico e económico, do Pai e do Filho, do povo-substância ou do povo-comunicação. O povo — real ou comunicacional — ao qual de algum modo o government by consent e a oikonomia das democracias contemporâneas devem inevitavelmente reenviar, é, na sua essência, aclamação e doxa. Se então, como procurámos mostrar in limine, a glória recobre e captura como «vida eterna» aquelas práticas particulares do homem vivente que definimos como inoperância e se é possível, como foi anunciado no fim de Homo sacer I, pensar a política — para além da economia e da glória — a partir de uma desarticulação inoperante tanto da bios como da zōē, é o que permanece atribuído como tarefa a uma pesquisa por vir. Giorgio Agamben, «Archeologia della Gloria: Soglia», Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economia e del governo (Homo sacer, I̶I̶,2̶ II, 4), Neri Pozza, Vicenza, 2007, pp. 277-284. |
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