Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #107 (António Guerreiro)

Sobre uma conceção da cultura que não é bem uma conceção: é um estado de mutilação cultural

«É uma das frases mais fascinantes sobre cultura que alguma vez foram proferidas por um dirigente partidário. É da autoria de Nilza Mouzinho de Sena, vice-presidente do PSD, e encontra-se num artigo saído recentemente no “Público”: “A cultura não pode ser uma entidade abstracta de elites, pensada por um nicho populacional e desagregada do interesse transversal de toda a população”. A frase é fascinante, porque realiza em si mesma a conceção de cultura que defende. E, em vez de uma ideia sobre cultura, o que ela exibe é o estado de mutilação mental a que foi sujeita a autora, pelo facto de se submeter à sua própria prescrição ideológico-cultural. Se a cultura fosse o que Nilza Mouzinho de Sena pensa que é, nem haveria uma Nilza Mouzinho de Sena para dizer o que pensa da cultura. Quanto mais um Goethe, um Kafka, um Pessoa, um Rothko, um Schönberg. A sua modesta proposição não pode ser confundida com a de um filisteu (há no filisteu uma atitude cínica, um afastamento voluntário e estratégico).

Trata-se de outra coisa, desprovida de estratégia, que o poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger classificou como “analfabetismo secundário”, ao pé do qual o verdadeiro analfabeto lhe parece “uma pessoa venerável”. Segunda Enzensberger, o analfabeto secundário é o produto de uma nova fase da industrialização, quando os meios de produção da imbecilidade proliferam de modo a criar os seus qualificados consumidores. O analfabeto secundário tem uma fé realista radical, o que o leva a considerar abstracto tudo o que não pode ser objecto da sua fé. Por isso, a sua preocupação e o seu zelo dirigem-se à população, à realidade demográfica. Menos do que isso, seria ceder a divisões, a cesuras, a tropismos minoritários. A população, ao menos, é um conceito que escapa a determinações culturais. É pura biologia.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 7.8.2010.

Sem comentários:


Arquivo / Archive