Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #72 (António Guerreiro)
«Sobre a linguagem opaca do corpo judicial
Nas parábolas de Kafka, a máquina infernal que arrasta as personagens para situações sem saída tem a forma de uma linguagem indecifrável ou causadora de equívocos. Exemplo supremo é a personagem que fica até ao fim da vida à porta da lei, por ignorar que, afinal, ela está aberta. Agora que estamos submetidos diariamente ao discurso jurídico, podemos verificar que ele consiste em criar opacidade nas palavras, de tal modo que todos os problemas passam a ser de linguagem. Todos temos a sensação de que juízes, procuradores, delegados se obstinam a falar com as mesmas palavras, no interior das quais se encerraram para sempre. 

Não se trata de uma linguagem, como a da ciência ou a da filosofia, codificada por necessidade de rigor conceptual. Na ciência, esse rigor serve para evitar os equívocos, para não dizer com as palavras uma coisa diferente daquilo que se pretende. Mas nesta linguagem jurídica que nos envolve acontece precisamente o contrário: as palavras cristalizam-se, tornam-se corpos sem vida, e o que passou a ter significado é o acto de as proferir. Assim, aquilo que se apresenta como a razão jurídica é afinal a performance de um corpo monstruoso: o corpo judicial.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 28.11.2009.

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