Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O espectador ocioso #2: Sem legendas

(sem imagem)

Como quase sempre, naquela tarde em que me dirigia afogueado ao Instituto Franco-Português para ver um filme, estava atrasado. São tantas as vezes que isto me acontece que tenho até o projecto, daqueles que nos consolam apesar ou precisamente por serem ultimamente irrealizáveis, de escrever um livro chamado «5 minutos de atraso», que trataria apenas desses fulcrais primeiros planos que nunca vi nos filmes que amo. (Nos meus sonhos complacentes, o título do livro ficaria igualmente bem em inglês - «5 minutes late» - e em francês - «5 minutes de retard»).
Mas, daquela vez, a sessão, apesar do meu espectacular atraso, não tinha sequer começado. A sala estava ainda comummente iluminada. Na verdade, nem espectadores ansiosos se avistavam. Certo que era apenas um obscuro filme russo (aliás, soviético) num ciclo sobre os «Cahiers du cinéma» no IFP, o que convenhamos não tem o condão de atrair assim tanta gente quanto devia. Mas, nem mesmo alguém?
Reconheço um funcionário de passagem e pergunto abismado pelo que se passa. O gentil senhor explica-me que a cópia tinha chegado a tempo da França mas, surpreendentemente, sem qualquer tipo de legendagem e que, como a língua russa ainda não é compreensível para a população geral, tinham por isso decidido cancelar a sessão. Num daqueles gestos de evidência que um quase louco pode ter, (quase) implorei ao senhor que projectasse o filme mesmo assim, que não fazia mal que os demais espectadores já tivessem abandonado o local, que a um filme não faziam falta nenhuma aquelas letras que nos fazem perceber a estória, que há muita música no timbre apenas das vozes, nas imagens, e outras teorias esfarrapadas que encontrei para fazer vencer a minha urgente vontade, que era apenas a de ver aquele filme soviético, que mais ninguém queria ver assim, naquele preciso momento. Acossado ou piedoso, o funcionário cedeu, quando outra espectadora mais hesitante, embora ainda mais atrasada, juntou o seu olhar muito levemente suplicante à minha ladainha. Foi assim que vi, com mais dois ou três felizes inocentes, o belíssimo de chorar Alenka (1961) de Boris Barnet.
Ah, sim, conhecia aqueles camiões de caixa aberta que atravessavam a estepe soviética de alguma parte, rasgando as cores daquela singular película soviética. Não senhor, não era apenas vermelho comunista o que tinha de especial aquela película. Todas as outras cores pareciam vir de um mundo de fadas, que sabemos bem não o era. Donde conhecia eu aqueles camiões a passarem dum lado para o outro? Pois era, claro, das Histoire(s) du cinéma, que, antes de tudo o resto, são a mais generosa forma de rememoração cinematográfica, reinvestindo de esplendor cada pedaço de filme e tornando, pelo menos na minha confusa memória, inseparáveis os filmes originais e as suas evocações por Godard. (Veja-se o Duel in the sun de King Vidor, com a Jennifer Jones e o Gregory Peck, também na saturada maquinação rítmica de Godard, aos tiros e beijos até à morte num monte poeirento).
Por causa das coisas, uma vez no Porto, feito parvo, teimei em público com Raymond Bellour que o Godard utilizava um excerto do Pelechian nas Histoire(s). Claro que era ele que tinha razão, quando dizia “olhe que não!” Bem procurava cima abaixo nas minhas vhs copiadas das Histoire(s), o que deu cá um trabalho, mas nada encontrava daquele pedaço de Pelechian levado a órgão que conhecia tão bem. Mas, como depois mostrei, o Bellour só tinha razão na parábola, na realidade era eu que tinha razão (ou o inverso) , como se diz no Nouvelle vague a propósito de Kafka. O Menk (1969) de Pelechian é maquinado numa parte de Les enfants jouent à la Russie (1993), episódio russo preparatório das Histoire(s).
Assim, desta vez fui confirmar academicamente se estes camiões tinham realmente atravessado a tundra godardiana. A útil partitura das Histoire(s), feita por Céline Scemama, confirma que o episódio 1b Une histoire seule inclui, ao minuto 4’03, as seguintes imagens: «Voyage dans la steppe à l’arrière d’un camion dans Alenka (Barnet, 1961) : une femme et un enfant, la tête recouverte d’un foulard; sur la route poussiéreuse, l’ombre d’autres camions passant dans la perpendiculaire à l’horizon/ noir /». [Um amigo solicito fez-me notar (eu já não me lembrava) que um excerto de Alenka aparece igualmente aos 4'15'' da Origine du XXIème siècle (2000), de início misturada com um travelling de Shining e acompanhada a música de piano]. É certo que não percebi nada bem o que levava a pequena Alenka àquelas paragens, nem os diálogos tão pedagógicos que mantinham as personagens que viajavam em cima do camião, nem as subtilezas da estória tão imbricada naquela outra história soviética de kolkhozes e sovkhozes, hoje enterrada, mas um dia também ela por repensar, e que ainda aprendi nas longínquas aulas de “geografia”, ou “meio físico e social” ou outra qualquer coisa assim, da escola secundária.
Sobre ver filmes em línguas estrangeiras de fonética incompreensível, e sem legendas também elas compreensíveis, tem o Abbas Kiarostami uma estória gira, embora não inocente. Conta ele algures, não me lembro onde, que teria visto em Paris um filme de Bergman [corrige-me um amigo dizendo que é um filme de Fellini, mas gosto muito mais da coisa com Bergman; parece-me que a estória funciona melhor] e que não tinha percebido nada, construindo a estória do filme na sua própria cabeça (que é, na verdade, onde ela deve ser feita); e que, um dia mais tarde, teria visto o filme de forma normalmente compreensível e tinha achado que a sua versão era bastante melhor que a original. Como não haveria de ser? Trata-se sem dúvida de uma estória muito pedagógica sobre a construção da narração no cinema, por esse mestre da perversão que é Kiarostami.
Recentemente tive uma experiência aproximável com o filme Senhsucht (2006) de Valeska Grisebach, que vi numa cópia dvd sem quaisquer legendas. Como não compreendo a língua alemã, à natural ambiguidade deste perturbante filme juntou-se o acrescento da que foi criada pela minha própria imaginação, que tantas vez prefere ser alimentada pelos frutos da ignorância. Fiquei tão feliz por não saber se as personagens tinham ou não morrido, das motivações específicas de cada uma delas, que a própria manifestação do dilema se visse ou ouvisse para lá dos corpos e das paisagens, ou quem tinha acabado por ficar com quem afinal. Era tão mais justo! Para mais, o filme tem um epílogo com umas crianças a discutirem precisamente as versões míticas da estória narrada, sobre o que se teria realmente passado, etc., procurando fomentar a ambiguidade, num final em aberto, chamam-lhe assim. Pois eu acho que devia haver uma versão do filme para todos os não-falantes do alemão, que não incluiria este epílogo, pois a bendita confusão estava já completamente ganha. Aliás, cada vez que leio uma sinopse deste filme não consigo conter a minha desilusão perante a redução que operam naquilo que eu (não) entendi. Não tendo percebido nada, inclui afinal muito mais. Por isso, muito cuidado com o que desejam perceber.


Alenka (1961) de Boris Barnet
Sábado, dia 29, 19h, na Cinemateca perto de si, espero


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