Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Defesa de uma personagem


Un royaume vous attend (1975)

« Hauris Lalancette de Abitibi que reclama um reino das suas mãos, que não pede nada a ninguém senão o direito de resgatar a sua terra, de fazer o seu pão, de fabricar as suas máquinas (...)
Creio mesmo que se o cinema, um dia, conseguir escapar ao colocar no mercado, à grande feira dos Oscares, à grande missa dos festivais, à orgia dos ídolos, dos bezerros de ouro e das estrelas, o directo permanecerá como uma via possível. Ainda acredito nesta ferramenta maravilhosa de uma câmara que pode, sem passar pela mitologia da ficção e da representação, exprimir o homem na sua humanidade menos literária e menos cinematográfica... O homem na sua condição... o homem ao abrigo do sonho de ganhar a lotaria... do sonho de casar com uma princesa... ao abrigo dos contos de fadas que são ainda e sempre uma forma de imperialismo. Todos os messias, todos os que propõem paraísos, todos os casinos, todas as lotarias saíram sempre a ganhar. Exploraram o homem. Dir-me-ão que o homem precisa do sonho. Respondo que tem também e sobretudo o direito de viver e que, demasiadas vezes, o sonho o desapossa do seu real e que ele deve sempre pagar o preço, que sai sempre a perder nessa transacção, que dá a sua vida por espelhos. O espectador de cinema e de religião é um pouco como o selvagem no comércio de peles: três séculos mais tarde está ainda no mesmo ponto, vestido como um branco mas quase desapossado da sua cultura: são os comerciantes que se encarregam... depois de se terem apossado da sua alma. (...)


Le Retour à la terre (1976)

O que me fica de Charlot é o monólogo que prossegue de um filme para outro; monólogo ruidoso de palavras através dos filmes a que chamamos (ironicamente?) mudos... Chaplin “fala” muito, discute, debita silenciosamente um fluxo de palavras; não tem medo de se repetir, de insistir. É esse lado “chaplinesco” que encontro um pouco nos teus filmes: desde Pour la suite du monde, desenvolvem um longo monólogo que atinge com a tua série sobre Abitibi e com a personagem de Hauris Lalancette um tom quase insustentável... Damos connosco a detestar Hauris e os seus gritos. Confesso que sou tomado por um estranho mal-estar perante esse personagem excessivo, trágico e cómico ao mesmo tempo. O excesso torna-se patético e insuportável. Tive por vezes o mesmo sentimento face à personagem de Charlot...
Retenho a palavra tragédia, que opões a comédia: é o drama – ou seja, uma forma de descer do pedestal. Na tragédia, o homem aparece no espírito. Está reduzido à sua relação com o destino. No drama, acrescenta-se a comédia, uma certa trivialidade, para o fazer descer do altar para o pôr em relação com a vida. Mas o patético em calções de trabalho, o patético à altura do homem pode parecer insuportável. Concedo que sim, mas é precisamente isso que me interessa.
Alguém disse, não pensando estar a dizer uma tal enormidade, que o verdadeiro pode por vezes não ser verosímil. Por delicadeza. Pelo cuidado de tornar a vida verosímil aos espectadores... principescos, certamente. Na corte de Luís XIV. E, como a escrita se alimenta da escrita, ainda dela não saímos. E, segundo estes critérios, adoptados pelo próprio Molière, a vulgaridade (no mais belo sentido do termo) de Hauris é insuportável a Madame de Sévigné, que se julga autorizada a dizer merda, mas não permitia que um outro dissesse mêrda. Autorizada por ela própria, claro. E nós aprendemos a viver nas Cartas de Madame de Sévigné.
São convenções que o directo já começou a abalar para reabilitar o homem. (...)
Volto à tragédia para não perder o fim da minha meada. Admito facilmente o aspecto trágico de Hauris Lalancette. Mas ele não representa no palco o seu drama. Ele não se imagina. Vive sobre a terra que ele próprio desbravou. Na humildade da sua pobreza. E ele não coloca a questão da sua própria carreira, mas a do reino de todos. Encontro aí um peso de tragédia que pesa bastante ao lado da história do palhaço Charlot. Bastante mais pesada e não temo dizê-lo, mesmo se sou o único a admiti-lo. Ele é a multidão que vai aos espectáculos, a multidão de homens a quem oferecem os sonhos das palhaçadas de Charlot enquanto este é o príncipe do seu sucesso. Então, de que lado está a tragédia?
A tragédia está em Sófocles, Racine, Corneille, Shakespeare ou Charlot, ou seja, numa imagem verosímil da tragédia ou na própria tragédia que podemos facilmente rejeitar como distracção. E a tragédia atinge o seu Shakespeare, o seu pedestal. Mas dá-se precisamente que esta questão nos reenvia ao essencial do nosso debate. Demos sempre imagens da tragédia porque não tínhamos nenhum meio de a alcançar na sua substância humana, na sua carne e no seu sangue. Pondo de parte o facto de que nos interessávamos sobretudo às histórias dos senhores, a tragédia permaneceu assunto de gosto, de moda... e não de homens e mulheres encurralados contra o seu destino. Para se dar em espectáculo, a tragédia reclamava ser encarnada. Uma espécie de magia presidia ao seu espectáculo. Uma cena, cortinas, actores, um ecrã. Celebrávamos missa. Segundo um ritual muito antigo. Obedecendo às verosimilhanças da escrita. Mas ele, Hauris, é insuportável. É um porco que se degola, um homem a quem se disse um reino espera-vos, um homem do fim da fila que recomeçou o reino na primeira árvore e que constata que voltam a plantar nas terras dos seus vizinhos mortos de miséria, que se dá conta de que se esquecem dele na sua vitória de terreno, que os pinheiros o sufocam, que o tempo corre contra ele, que o rejeitam para a lancheira, que lhe propõem em vez do reino um destino de lancheira e ele recusa perder, abandonar, recusa que o degolem sem ter em conta as promessas. Então ele grita. Grita como um porco a quem se degola, não como um grande actor, não como Sarah Bernard ou Gérard Philippe que permanecem dentro dos limites da delicadeza e da verosimilhança, queridos a Boileau e a Madame de Sévigné.

Já o disse antes... estou farto de ver Yves Montand morrer pela França, mas interessa-me imenso escutar Hauris bater-se e recusar morrer pela sua dignidade de homem do comum
, mesmo se por vezes ele se torna insuportável às belas almas formadas pela escrita.
Para mais, perguntas-me sobre o que é este homem vulgar (vulgar como popular, vulgar como diríamos do homem da multidão) e eu diria que ele é aquele pelo qual procuro identificar-me, descobrir-me uma identidade. Ele é a minha imagem e não peço outros, mesmo que encarnados por Marlon Brando, mesmo contados por Bertolucci. É ele que se conta e que me conta. E existo graças a essa palavra que escuto. E não estou desconfortável, nunca, no seu discurso. (...) uma verdade que permitiu escapar ao imenso imperialismo das Escrituras, mesmo das bíblicas. É o que se tem de conquistar. Hauris desbravou a sua terra para conquistar o reino. Empreendi o desbravar de Hauris para me libertar das escritas e das ficções.
Ora, nunca encontrei em todos os meus viajares, um homem que encarnasse com maior potência e lucidez a vontade do homem quebequiano em conquistar os seus territórios. E quando chama reino à sua terra, é preciso igualmente saber e compreender que este homem, quando lavra a terra, lavra o seu país. E reclama tudo: a terra, a linguagem, a floresta, o génio. Recusa a lancheira. Reivindica todas os domínios. E, em vez de escrever belos poemas com palavras do vento que sopra da Califórnia, coloca a sua terra como uma imagem do reino... a sua terra sulcada dos seus esforços, desbravada pelas suas mãos, fecundada pelo seu boi. Não conheço imagem poética mais bela e não espero nada de ninguém para me dizer o meu reino, tendo-o recebido dele com tal elevação.
Hauris ao assumir-se, ao trabalhar, ao cultivar, afirma a cada golpe de machado o seu desejo de conquista e de ocupação de um território colectivo. Nunca faz um gesto sem considerar a vantagem de todos. É o homem do fim da fila, o franco-atirador que põe tudo em causa. Conhece a sua causa e ela chama-se soberania dos homens do seu falar sobre o território do seu labor. De modo que não hesito em dizer dele que é a maior personagem que me foi dada filmar. Objectam-me o insucesso desses filmes. Como é que um filme que não se mostra poderia ter sucesso, mesmo de estima? (...) Quanto a Hauris, com o qual me identifico... gostava de saber o sentimento dos quebequianos. Estou preparado para me ter enganado. Mas aguardo o veredicto do público. Recusam-me o processo.
É certo que Hauris não é um personagem de ternura. É de tragédia. Mas essa tragédia não é a que todos vivemos? Tem alguém medo que reconheçamos o nosso drama... que fiquemos emocionados ao ouvir os gritos do porco que se degola? A cada obstáculo que encontra, Hauris não se põe em causa pessoalmente, não se queixa por sua conta, mas reivindica todo o território. Porque é todo o território que é posto em causa pelos obstáculos, todos os obstáculos, tanto os da impotência dos outros como as inumeráveis fraquezas da nossa impotência. E se o levássemos à letra e nos tomássemos em mãos? E recusar as belas imagens do cinema que nos priva da humilde realidade sem a qual nunca nos chegaremos a reconhecer e reivindicar. (...)
Os homens do nosso tempo procuram responder às questões do nosso tempo indo ao cinema.
No entanto, a vida brinca connosco e é preciso sabê-lo. Quem firmará a vida já que a escrita só firma a escrita, já que o cinema procura refúgio na ficção e nas belas regras da verosimilhança... senão a própria vida? É certo que os vivos não chegarão a encarnar os mortos, a evocar os destinos tanto como os príncipes. E, contudo, os reis gregos não eram mais do que eu e você. Reis bem pequenos, em suma. Mas alguém, com o tempo, deu-lhes um espaço e com a ficção uma dimensão que não tinham aos seus olhos. Porque não poderíamos fazer viver os vivos e a sua tragédia? E se a escrita não tem essa humildade e se o cinema acha que isso não rende, confio ao directo essa humilde tragédia dos homens vivos que são os reis da sua vida. E recuso que os vivos sejam desvalorizados pela ficção... que a ficção assassine a vida, impeça-a de existir, de se exprimir, a desvalorize. A ficção sonegou-nos a existência. O directo pode voltar a dar-nos a consciência. Pretendo devolver ao homem de palavra o seu direito de palavra que lhe foi sonegado pelas gentes da escrita.



C'était un Québecois en Bretagne, madame (1977)

Mas será que escapamos verdadeiramente à vedeta e à vedetização? Quando Charles Chaplin em Limelight se coloca ele próprio em causa, interroga-se como vedeta do cinema mudo. Não encontramos a mesma coisa quando Hauris Lalancette, porco que se degola, é ele próprio interrogado e posto em questão pelo realizador? Não constróis tu uma ficção em torno da personagem de Hauris Lalancette? Encontro em Hauris Lalancette uma certa vedetização que o directo lhe parece assim construir. Tenho a impressão que sacralizas Hauris a teu modo; ele torna-se o emblema do sonho nacionalista quebequiano...
Para mim, trata-se de um problema de leitura. Lês o directo como a ficção, recebe-lo como uma ficção, como um evangelho. É o cinema que fabrica o mito como todas as magias. O cinema pode mistificar Hauris. Podia fazê-lo. Mas nas condições actuais de distribuição dos meus filmes, não creio que o consiga.
Admitamos, para a discussão, que assim seja. Que Hauris se torne um pouco vedeta não tanto enquanto Hauris mas na medida em que o leitor o percebe como tal. De resto, recuso a ideia de uma ficção introduzida no real pela mediação do cinema: essa ideia doentia exaspera-me como me exasperavam os padres que queriam tudo santificar; mas não é fácil de explicar-se sobre isso aos consumidores de ficção. Daí a questão de Hauris vedeta. Retornemos, para ganhar um pouco de recuo, a Marie [Le règne du jour]. Podemos dizer sem mentir que ela se tornou uma vedeta na medida em que se a conhece, em que se a reconhece, em que se tem mesmo vontade de lhe fazer uma visita. Tornou-se uma personagem no imaginário dos espectadores mesmo se ela não o é necessariamente nas suas redondezas. É por assim dizer a personagem da sua própria existência. É, ao mesmo tempo, a imagem da realidade e a realidade ela própria. Está aí a confusão. Não se representa senão a si mesma. Se as pessoas dão à representação, à imagem, mais importância que à coisa representada, é erro seu e não o do filme. Problema de leitura. À força de fazer fé na ficção acaba-se por deificar o que não existe.
Aliás, Marie não deixou de habitar o seu pequeno quarto na ilha, de gostar das pessoas que a vinham ver sem as confundir com uma ficção. Ela aceitou a realidade dos seus visitantes. Não trocou a sua humildade. Nunca foi à Croisette em Cannes onde as vedetas procuram um pedestal na fé dos crentes, na curiosidade dos espectadores. Recusou toda a sacralização porque ela não era uma imagem. E Hauris, seja qual for a percepção dos espectadores, continua a padejar o seu estrume no seu estábulo no preciso momento em que perguntas se eu não o vedetizei, como tu dizes. Curiosa vedeta. Não saiu da sua vida para entrar na imagem. Que os espectadores não consigam fazê-lo sair da imagem para o substituir na sua vida, é uma deficiência da leitura malévola que ensinam aos homens para deles fazer consumidores de imagens. Numa outra época, seria iconoclasta e pelas mesmas razões. (...)


Gens d'Abitibi (1980)

O sentimento muito forte de que não me contem uma história para eu adormecer. Dito isto, não me considero um grande cineasta. Nem sequer tenho vontade que uma tal coisa me aconteça. O meu problema não é fazer cinema. E não sou um desses amantes de cinema de que fala Paul Éluard. São os homens que me interessam.
Procuro exprimir os homens dando-lhes a palavra. Mais ou menos directamente. É Hauris Lalancette que me interessa e não o filme que poderia construir em argumento a propósito de um Hauris Lalancette de ficção, e a que poderia entregar a representação a Delon ou a Trintignant que conheço apenas de nome... confesso-o sem humildade. (...)
Alguns interessam-se pelos cogumelos, outros pelo cinema, outros pelos timbres. Eu interesso-me pelos homens reduzidos ao silêncio pelo cinema. É uma escolha pessoal que não põe em causa o cinema, nem o pretende. Digo que, segundo o que penso, a ficção tem o defeito de desencarnar os vivos da sua humanidade, de os fazer viver por procuração nos sonhos de sábado à tarde... digo-o porque o penso e sem me preocupar em ter ou não razão. É este o meu sentimento. Um ponto, é tudo.
No que concerne à minha atitude, ela responde não ao meu sentimento sobre a ficção, mas a uma necessidade de me encontrar aos meus olhos, de me nomear. Sentia-me profundamente alienado, tanto por Claudel como por John Lennon, e quis escapar ao seu domínio, ao seu domínio, para nomear por mim as minhas estações. Talvez este problema esteja resolvido e eu me feche numa atitude antiquada. O que explicaria o eclipse de que falas e que é bem real. Mas estou eu no mundo para brilhar ou para me autentificar? E ainda não apreendi a nossa libertação colectiva. (...)
Mais uma vez, falo do meu prazer. E do peso dos homens que oponho ao peso das imagens. E é assim que justifico a minha teimosia em não perseguir o sucesso. »

Pierre Perrault entrevistado por Jean-Daniel Lafond, «Touts contes défaits : Pierre Perrault, cinéaste et québécois» (1982), in Pierre Perrault, Caméramages, Éditions de l'Hexagone, Montréal, 1983, pp. 98-111

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