Ao pé da letra #221 (António Guerreiro): A missão histórica
Uma frase de Passos Coelho, aparentemente anódina, numa recente entrevista, abre um mundo vasto de significação: foi quando o primeiro-ministro disse que “o Governo está a cumprir uma missão histórica”. O imperativo das missões históricas marcou a política ocidental na época moderna, e quando essa missão histórica foi assumida em nome de um povo ou de uma nação correspondeu muitas vezes a uma missão metafísica (como é o caso do nazismo). A “missão histórica” é a política dos que se imaginaram grandes heróis e deixaram o caminho juncado de cadáveres. Mais perto de nós, tornou-se evidente que já não existem missões históricas a cumprir. Corolário desta ausência de uma vocação histórica (missão tem o sentido de vocação, de chamamento) foi a tese de que tínhamos chegado ao fim da história. Não se trata de ver nas palavras de Passos Coelho o sentido sinistro que elas tiveram noutro contexto histórico; devemos no entanto observar que elas trazem um progressismo escondido que supõe a marcha em direção a uma nova época e a uma nova felicidade. | O nosso primeiro-ministro faz-nos uma promessa progressista que nós, no sítio desolado em que nos encontramos, desencantados, temos dificuldade em reconhecer como mobilizadora. Pelo contrário, a noção de “missão histórica” tem hoje para nós o aspeto dos objetos farfalhudos e inúteis, com alguma aura de antiguidade, exibidos nas lojas de velharias. Servem como peças decorativas, mas se tentarmos utilizá-los eles revelam-se não funcionais e nós mostramo-nos inábeis. Só por determinação de uma máquina linguística que funciona estendendo uma trama de lugares-comuns e frases feitas é que nos dispomos a trair a época com missões históricas, porque o que queremos mesmo, com urgência, é que o nosso próprio tempo, de que fomos expropriados, nos seja devolvido. Esta, é uma tarefa política; aquela é a tarefa de uma máquina mitológica. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.12.2012. |
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