Ao pé da letra #148 (António Guerreiro): Moral e política
Sucessivas ondas de indignação, de diferentes proveniências, trouxeram à costa o cadáver da política. A indignação em massa é um fenómeno mimético e reativo, analisável no âmbito de uma geometria das paixões, mas estranho a uma racionalidade que dá origem a um discurso de conhecimento e de legitimação A indignação não se articula numa sintaxe, não tem fôlego para construir frases — esgota-se numa palavra exclamada ou numa interjeição (por mais prolongadas que ambas sejam), proferidas com os pulmões cheios de ar e o coração acelerado. Por isso, a sua capacidade para se tornar politicamente qualificada — para entrar no espaço de representação política — é quase nula: a política é discurso, lógica, conceptualidade. O consagrado “direito à indignação” existe precisamente porque a indignação é a resposta instintiva a um dano moral e, nesse sentido, é sempre legítima. Se alguém se sente indignado é porque tem razões para tal, por mais que essas razões não sejam as mesmas que indignam os outros. /¶ | Pelo contrário, as razões para fazer uma revolta, uma insurreição ou uma revolução precisam de ser partilhadas, precisam de fundar uma comunidade (e por isso são figuras políticas). Assim, um indignado, no momento em que se manifesta enquanto tal, tem sempre razão (porque é a ‘sua’ razão, tão íntima e idiomática que, mesmo que não consigamos compreendê-la, temos de atendê-la no seu direito), e a sua indignação, se for autêntica e não encenada, é indiscutível. Já a política não funciona desta maneira: mesmo aquilo que uns clamam como óbvias “injustiças políticas” é sempre objeto de debate e de conflito; uma injustiça política não é como uma injustiça moral. Ora, quando a indignação entra num espaço tradicionalmente reservado à política, é porque esta foi substituída pela moral. A isto se chama despolitização, e nenhum bem pode daí advir. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 16.7.2011. |
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