Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Tiradas as máscaras, seguimos o cortejo


Situação de melodrama (em tom de falsete): uma jovem vestida de negro acompanha a pé o caixão de seu pai, que se passeia pela última vez por ruas vazias. Caída em desgraça — sua honra feminina com mácula —, ninguém da cidade se dignou acompanhá-la no cortejo. Vai ela com uma mão apoiando o caixão na sua frente, para que este não caia com os solavancos da carroça puxada pelo burro. Dá-se isto em dias de Carnaval e, de facto, uma multidão invade em ruidoso festejo as ruas ainda agora desertas, circundando o caixão com a sua alegria, gritando euforicamente, atirando confetti e, sobretudo, impedindo a passagem da carroça, levando assim a jovem dolente a adicional desespero. Oh, as gentes que festejam não costumam dar-se conta — talvez não lhes importe — da realidade dos enterros.
No entanto, um deles ilumina-se identificando o defunto, e vociferando consegue impor o reconhecimento entre os foliões. Faz-se um silêncio compadecido, solene. As máscaras do rosto — que ocultavam talvez a deformação do festejo —, com um gesto suave e decidido da mão direita, são retiradas em consideração, uma após outra. Abram alas, deixem passar o enterro — ordena alguém inchado de autoridade moral. E, em vez de ficarem a vê-lo afastar-se, guardando respeitosa distância, todos sem exceção se juntam agora ao caixão. Tiradas as máscaras, seguem o cortejo fúnebre que ia vazio, esquecidos, por momentos apenas, das sempiternas questões da honra, quem sabe se não invejando um pouco a chegada àquela morada.

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