A propósito de Cesarée, Les Mains Négatives, Aurélia Steiner (Melbourne) e Aurélia Steiner (Vancouver), quatro curtas-metragens de Marguerite Duras.
A obra cinematográfica de Marguerite Duras tem como motivo estruturante a destruição. Desde o início, desde Un Barrage contre le pacifique, que a destruição aparece como o tema central, invadindo toda a obra posterior de Duras até esse título simbólico entre todos: Détruire, dit-elle. No entanto, se num primeiro momento a sua ocorrência era apenas de natureza temática, a pouco e pouco, de tema, a destruição, passou a operação sistemática, de modo a poder acolher o desejo cada vez mais claro e consciente de destruir. A passagem ao cinema corresponde a essa necessidade de estender a pulsão devastadora à própria forma da obra, salvando a escrita. O cinema permitiu a Duras entregar-se ao gesto de destruir a obra que dá a ver a destruição, o seu imaginário de ruínas abraçando e tocando, através dele, a matéria constitutiva do cinema, das palavras às imagens, numa tentativa de o retomar do zero, num movimento não propriamente de regresso às origens, mas de subtil selvajaria, mostrando-nos um outro sítio da imagem e da escrita. As quatro curtas-metragens que Marguerite Duras realizou em 1979, Cesarée, Les Mains Négatives, Aurélia Steiner (Melbourne) e Aurélia Steiner (Vancouver), são de algum modo filmes exemplares relativamente a este desejo de desfazer, de destruir o cinema, que culmina com os longos planos negros de L'Homme Atlantique, e que uma vez esgotado lhe permitirá regressar à escrita («O cinema acabado, ia recomeçar a escrever livros»). «Quando escrevi Aurélia Steiner (Vancouver), não estava certa de poder filmar a seguir. Escrevi-o na felicidade de não o filmar depois. Escrevi-o. Se não me tivessem dado os cinco milhões para filmar teria feito um filme negro, uma banda óptica negra. Estou numa relação de morte com o cinema. Comecei a faze-lo para atingir a conquista criadora da destruição do texto. Agora é a imagem que quero atingir. Estou a conceber uma imagem passe-partout, infinitamente sobreponível a uma série de textos, imagem que não teria em si nenhum sentido, que não seria nem bela, nem feia, que ganharia o seu sentido do texto que passa sobre ela. Já com a imagem de Aurélia Steiner (Vancouver) não estou longe da imagem ideal, aquela que será suficientemente neutra para evitar a pena de fazer uma nova imagem. Aqueles que fazem quilómetros de imagens são naives e às vezes não chegam a nada. Com o filme negro teria chegado à imagem ideal, à do assassínio confessado do cinema. É o que creio ter descoberto estes últimos tempos com o meu trabalho.» Com efeito, estes quatro filmes cristalizam os temas e a forma característica da obra de Duras e nesse sentido, dão a ver como tal, mais do qualquer filme anterior, os elementos fundamentais que entram na explicação do seu cinema. Por um lado, a famosa dissociação entre a imagem e a palavra, que foi sendo experimentada, de forma cada vez mais lúcida, ao longo de toda a obra, atinge nestes filmes um dos pontos de maior explicitação e pureza, sobretudo se tivermos em conta esse desejo do filme sem imagens, do filme negro, do filme da voz da leitura do texto, invocado a propósito de Aurélia Steiner (Vancouver). De facto, o confronto da imagem com as potências da palavra, da escrita e da voz passa em termos estilísticos, nas quatro curtas-metragens, por uma nítida e paradigmática disjunção entre o ver e o falar. Temos, de um lado, o filme da voz, em que um texto de Marguerite Duras é lido por ela em off e, do outro, o filme das imagens. Não há nenhum pleonasmo entre ambos, um vazio, uma espécie de negro, que se vem inserir entre eles, sendo o único factor de ligação. Este negro aparece, então, como espaço de não relação, mas permitindo ao mesmo tempo uma relação mais profunda: o vazio desenha um intervalo em que, a dado momento, a imagem entra no texto e o texto acaba por sair das imagens; um abre o outro, o sentido ficando sempre suspenso, aberto, e o pensamento vacilante, face à impossibilidade de fazer coincidir imagem e palavra. Por exemplo, «em Aurélia Steiner (Melbourne), o Sena é ao mesmo tempo o Sena e não importa que rio. Vemos o Sena e ao mesmo tempo outra coisa. É um vazio no meio da imagem. Algumas vezes uma frase enlaça-o. Há pontes, há passagens da linguagem que podemos tentar. Mas depois voltamos ao vazio». Por outro lado, nestes quatro filmes torna-se mais explícita a dimensão política do cinema de Duras, não só ao nível estrutural, a partir do que foi dito acima, por relação com as formas dominantes do cinema, mas sobretudo ao nível da ligação directa entre as formas cinematográficas, o dispositivo formal, e aquilo de que o texto fala. E o que dizem os textos? Falam de uma rainha morta cujo nome foi esquecido com o desaparecimento e ruína da cidade de Césarée (de algum modo ressuscitada em Paris), homenageiam os excluídos e esquecidos do mundo, testemunham pelos mortos da história, perspectivando, assim, historicamente a vertente temática da destruição, numa atenção à questão do poder, do holocausto, da memória. Os quatro filmes impõem-se, então, como um marco particular na obra de Duras, pois assinalam o momento em que o seu imaginário de ruínas encontra as ruínas da história e «testemunha da vergonha de ser homem». Marguerite Duras diz, a propósito de Aurélia Steiner (Vancouver): «é um cinema limite. Eu desvelo-me no desespero de não poder apreender a coisa judia. E porque me meto eu nisto? Eles falam muito pouco, finalmente, eles.» Todos os quatro filmes relevam desse confronto entre a escrita, e no caso de Duras o cinema é uma forma de escrita*, e as potências do esquecimento, do vazio do nada dito, do nada inscrito, do silêncio como grande dor, do intolerável do horror e da morte, tentando imaginar aquilo a que o nosso pensamento se assemelharia se estivéssemos noutro sítio. Trata-se, para Duras, de usar o cinema para dizer a nossa dificuldade em compreender, em compreender, por exemplo, o lugar judeu e o que ele diz da potência de morte de que o homem é capaz. Não compreendemos, mas não renunciamos a compreender. Ainda em relação a Aurélia Steiner (Vancouver): «Eu creio que os judeus, essa perturbação para mim tão forte, e que eu vejo com toda a clareza (...), vão ao encontro da escrita. Escrever é ir procurar fora de si o que já está cá dentro. Esta perturbação tem a função de reagrupamento do horror latente espalhado pelo mundo e que eu reconheço. Dá a ver o horror no seu princípio.» Contra o imaginário do cinema dominante, o cinema de Duras é um cinema lacunar, do intervalo, do negro, que permite mostrar o que não se pode ver, ou que permanece impossível de ver inteiramente, o que permanece inacessível como todo. Porque a destruição instala um vazio no interior da possibilidade de ver, a questão de como mostrar, de como falar sobre ela, é uma questão política. Não é possível representar a colusão entre o passado e o presente, não é possível representar a morte e o desaparecimento como presentes, só é possível mostrar a descontinuidade produzida pela destruição; A palavra será lacunar, a imagem também. Neste sentido é do vazio que se chama e é ao vazio que se regressa.
* Toda a obra cinematográfica de Marguerite Duras pode ser lida à luz de uma tentativa de ligar o gesto de filmar e o de escrever, através da procura de uma imagem capaz de acolher o dispositivo falante. Para Duras, o cinema seria uma escrita impedida, falhada, que, ao tornar a palavra filmável, serviria como forma de a ajudar a compreender as coisas que não compreende quando escreve. «Falo da escrita. Falo também da escrita mesmo quando parece que falo do cinema. Não sei falar de outra coisa. Quando faço cinema escrevo, escrevo sobre a imagem, sobre o que ela deveria representar, sobre as minhas dúvidas quanto à sua natureza. Escrevo sobre o sentido que ela deveria ter. A escolha da imagem que se faz a seguir é uma consequência da escrita. A escrita do filme - para mim - é o cinema. Em princípio um script feito para um depois. Um texto, não. Aqui quanto a mim, é o contrário.» texto de Susana Duarte
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