O que é uma guerra?
Cinéma/cinémas: Jean-Luc Godard (1987)
79 primaveras (1969) de Santiago Álvarez
(excertos)
« Caro Senhor,
« Empreendimento demencial, enciclopédia pessoal que reorganiza, enlouquecendo-o, todo o arquivo do cinema, as História(s) do cinema realizam um velho sonho godardiano: pensar e historificar o cinema usando imagens, sons e a montagem; ou seja: a própria língua do cinema. Compôs as História(s) no seu bunker de Rolle, nessas catacumbas high tech, forradas de monitores de vídeo, que não aparecem em JLG/JLG mas sim no especial de “Cinéma/Cinémas”, numa cena deslumbrante, grande êxtase pedagógico, em que Godard mostra ao seu entrevistador porque é interessante o uso do ralenti num documentário do cubano Santiago Álvarez e porque é inadmissível o de Kubrick em Nascido para matar. » Alan Pauls, in Radar
« Num programa de televisão, Jean-Luc Godard mostrava duas fitas de vídeo a seu entrevistador. Duas diferentes visões da Guerra do Vietnã. A primeira era Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987) de Stanley Kubrick, e a segunda 79 Primaveras, o média-metragem de Santiago Álvarez sobre o aniversário de Ho Chi-min. O confrontamento entre os dois filmes dizia respeito ao que Godard chama de “crítica visual”. As seqüências do filme de Kubrick eram exuberantes, a técnica perfeita, as batalhas incrivelmente filmadas, enquanto Santiago Álvarez se limitava a pegar alguns fotogramas de soldados andando pelas matas vietnamitas, colocar em banda de som, altíssima, um som de metralhadora, e por fim fazer tudo para destruir os fotogramas: queimá-los, fazê-los sair do carretel, mostrar ao espectador a fragilidade da película espelhada com a fragilidade humana numa guerra. O resultado sai também exuberante, até mais forte do que as imagens de Kubrick, mas acima de tudo o que importa a Godard é que as imagens de Santiago Álvarez podem ser belas ou feias, mas evidentemente elas condenam por sua própria existência a guerra, retiram de suas imagens qualquer poder de fetiche da imagem de guerra, enquanto Kubrick se deixa encenar cada imagem, como de seu estilo, com seu notório preciosismo. Kubrick, em seu filme, pode odiar as razões dos americanos, mas ele tira proveito estético da guerra. Santiago Álvarez odeia a guerra e faz questão de mostrá-lo não mostrando: infligindo nas imagens da guerra todo tipo de procedimento para destruir os fotogramas, tirar da imagem de guerra todo poder de gozo que ela pode fornecer. » - Ruy Gardnier, in Contracampo
(excertos)
« Caro Senhor,
Obrigado pelo seu correio electrónico datado de 20 de Janeiro - 11:24. Muito pouca saúde. Muita neve para o aeroporto, e muito poucas notas do banco guardadas para o bilhete.
Hollywood dizia sempre que este vosso criado não era feito para contar estórias. Por isso disse no último capítulo das minhas estórias do cinema que nada está perdido, excepto a honra.
É assim meu dever - não direitos sobre as cópias, deveres - não aceitar mais tempo a honra do vosso prémio. Por favor, aceite as seguintes incompletas razões para uma tão genuína e discreta afirmação:
JLG nunca conseguiu ao longo da sua carreira de realizador/espectador de cinema:
Impedir o Sr. Spielberg de reconstruir Auschwitz,
Convencer a Sra. Ted Turner a não colorir as caras engraçadas do passado,
Condenar o Sr. Bill Gates por chamar ao seu escritório de bug's Rosebud,
Compelir o New York Film Critics Circle a não esquecer Shirley Clarke,
Obligar a Sony ex-Columbia Pictures a imitar Dan Talbot/New Yorker Films quando entrega as contas,
Forçar as pessoas do Oscar a premiar Kiarostami em vez de Kieslowski,
Persuadir o Sr. Kubrick a projectar as curtas de Santiago Álvarez sobre o Vietname,
Pedir à Sra. Keaton para ler a biografia de Bugsy Siegel,
Filmar O desprezo com Sinatra e Novak,
etc., etc.,
Ainda não acabei, caro Senhor, a minha longa viagem à casa da cinematografia, mas falhei bastantes portos de abrigo - não uma rapariga em cada porto, mas também nenhumas honras que pudesse merecer.
Peça por favor à distinta audiência alguma indulgência pelo lamentável inglês deste vosso colega, e envie o prémio ao Bleecker Street Cinema, se ainda existir.
Afectuosamente seu,
Jean-Luc Godard », Carta ao New York Film Critics Circle
Hollywood dizia sempre que este vosso criado não era feito para contar estórias. Por isso disse no último capítulo das minhas estórias do cinema que nada está perdido, excepto a honra.
É assim meu dever - não direitos sobre as cópias, deveres - não aceitar mais tempo a honra do vosso prémio. Por favor, aceite as seguintes incompletas razões para uma tão genuína e discreta afirmação:
JLG nunca conseguiu ao longo da sua carreira de realizador/espectador de cinema:
Impedir o Sr. Spielberg de reconstruir Auschwitz,
Convencer a Sra. Ted Turner a não colorir as caras engraçadas do passado,
Condenar o Sr. Bill Gates por chamar ao seu escritório de bug's Rosebud,
Compelir o New York Film Critics Circle a não esquecer Shirley Clarke,
Obligar a Sony ex-Columbia Pictures a imitar Dan Talbot/New Yorker Films quando entrega as contas,
Forçar as pessoas do Oscar a premiar Kiarostami em vez de Kieslowski,
Persuadir o Sr. Kubrick a projectar as curtas de Santiago Álvarez sobre o Vietname,
Pedir à Sra. Keaton para ler a biografia de Bugsy Siegel,
Filmar O desprezo com Sinatra e Novak,
etc., etc.,
Ainda não acabei, caro Senhor, a minha longa viagem à casa da cinematografia, mas falhei bastantes portos de abrigo - não uma rapariga em cada porto, mas também nenhumas honras que pudesse merecer.
Peça por favor à distinta audiência alguma indulgência pelo lamentável inglês deste vosso colega, e envie o prémio ao Bleecker Street Cinema, se ainda existir.
Afectuosamente seu,
Jean-Luc Godard », Carta ao New York Film Critics Circle
« Empreendimento demencial, enciclopédia pessoal que reorganiza, enlouquecendo-o, todo o arquivo do cinema, as História(s) do cinema realizam um velho sonho godardiano: pensar e historificar o cinema usando imagens, sons e a montagem; ou seja: a própria língua do cinema. Compôs as História(s) no seu bunker de Rolle, nessas catacumbas high tech, forradas de monitores de vídeo, que não aparecem em JLG/JLG mas sim no especial de “Cinéma/Cinémas”, numa cena deslumbrante, grande êxtase pedagógico, em que Godard mostra ao seu entrevistador porque é interessante o uso do ralenti num documentário do cubano Santiago Álvarez e porque é inadmissível o de Kubrick em Nascido para matar. » Alan Pauls, in Radar
« Num programa de televisão, Jean-Luc Godard mostrava duas fitas de vídeo a seu entrevistador. Duas diferentes visões da Guerra do Vietnã. A primeira era Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987) de Stanley Kubrick, e a segunda 79 Primaveras, o média-metragem de Santiago Álvarez sobre o aniversário de Ho Chi-min. O confrontamento entre os dois filmes dizia respeito ao que Godard chama de “crítica visual”. As seqüências do filme de Kubrick eram exuberantes, a técnica perfeita, as batalhas incrivelmente filmadas, enquanto Santiago Álvarez se limitava a pegar alguns fotogramas de soldados andando pelas matas vietnamitas, colocar em banda de som, altíssima, um som de metralhadora, e por fim fazer tudo para destruir os fotogramas: queimá-los, fazê-los sair do carretel, mostrar ao espectador a fragilidade da película espelhada com a fragilidade humana numa guerra. O resultado sai também exuberante, até mais forte do que as imagens de Kubrick, mas acima de tudo o que importa a Godard é que as imagens de Santiago Álvarez podem ser belas ou feias, mas evidentemente elas condenam por sua própria existência a guerra, retiram de suas imagens qualquer poder de fetiche da imagem de guerra, enquanto Kubrick se deixa encenar cada imagem, como de seu estilo, com seu notório preciosismo. Kubrick, em seu filme, pode odiar as razões dos americanos, mas ele tira proveito estético da guerra. Santiago Álvarez odeia a guerra e faz questão de mostrá-lo não mostrando: infligindo nas imagens da guerra todo tipo de procedimento para destruir os fotogramas, tirar da imagem de guerra todo poder de gozo que ela pode fornecer. » - Ruy Gardnier, in Contracampo
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